Aquele que procura faíscas...

quarta-feira, 27 de junho de 2012

1.413


O dia parecia com outro qualquer. Mas não era. Levantou-se e fez a cama. Na cozinha, o café forte. Pensava no que a faria esquecer. Nada. Isso ficaria para sempre, como tantas outras lembranças boas ou ruins. Era hora de chorar quietinha. Chorava sozinha há tempos. Nunca gostou de colo. Mas desta vez não chorava pela solução que parecia absurda para uns e muito sensata para outros. Para ela tudo se encaixava. Chorava de cansaço.

Contudo, estava certa do que queria. Pensava que estava no lugar certo, fazendo a coisa certa. Não podia dar-se ao luxo de perder tempo. A vida é muito breve e fez tudo o que podia. 1.413. O número apareceu enquanto tirava a pasta virtual do campo de visão removendo os zeros da frente do nome dele. Não estava mais no topo de sua pirâmide. Seus e-mails não seriam mais prioridade. Suas vidas não mais se comunicariam. Era hora de andar para frente. 

1.413. Podiam ter sido beijos, mas não foram... Assim como não foi o tempo de convivência em dias. Ou a quantidade de vezes que colaram o corpo um no outro. Tudo parecia pouco para o tempo que se relacionaram. Menos o número de mensagens virtuais. Dava mais de uma por dia. E foi o que fizeram mais assiduamente. Escreveram, escreveram, escreveram... No entanto esqueceram-se de fazer tudo aquilo que estava no papel.



terça-feira, 12 de junho de 2012

Suplicando


Choro sempre e acho graça de um tudo. 
Busco em mim explicação, mas as estrelas do céu me deixam mudo. 
Meu desejo cala e sinto frio. 
Sem você na cama sou vazio. 

Quando nos veremos novamente?

Preciso do seu toque, cheiro, amor.
Suas mãos me arrepiam de prazer.
O gosto macio do seu beijo faz falta toda hora
e não consigo te esquecer...

Volta pra mim assim que ouvir minha súplica.
Por mais quanto tempo ficaremos sós?
Cada qual em seu canto sem conter o pranto,
sufocando fundo, lamentando, engolindo a voz...

Desengaños



Acordou com dores no corpo.
Tensão.
Expectativas frustradas trazem desencanto com a vida.
Sofrimento e confusão.
É possível ser feliz sim, mas todos devem ter histórias tristes para refletir e compartilhar. As dificuldades criam caráter. Sua infância foi extremamente alegre. Rica de experiências. Aproveitou tudo o que a Natureza tinha para oferecer e ganhou muito carinho. Claro que apanhou também. Todos na sua casa tinham sido surrados, exceto o caçula, que ainda assim achava que não recebeu a devida atenção... Nem por isso guardaram rancor. Hoje em dia dramatizam tanto a educação dos pais que tudo pode virar trauma. Agora se via diante de mais um desafio. Mas iria enfrentá-lo de cabeça erguida. Sem rodeios. Sem fazer tipo. Mas no seu tempo.
♫ Yes I need more time just to make things right. ♫

O Dedão


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Já meio embriagada virava para cima e para baixo a carta do estrangeiro. De tanto carregar o pedaço de papel para todo canto o mesmo já começava a romper-se no meio. Resolveu inspirar fundo, relaxar o maxilar e fitar o corpo novamente, com a carta por cima do líquido inebriante.

A carta ainda estava lá. O amor ainda estava lá. Só quem não estava lá era ele. Havia virado o patuá de cabeça para baixo e em seguida ficou tão pensativa que coçou a orelha esquerda, enquanto o pé do mesmo lado repuxava num pouco de câimbra na sola.

A esta altura os movimentos involuntários estavam quase que incontroláveis e a rapariga coçava um pouco o cabelo, o rosto, tocava o anel do polegar direito e sorria para o nada. A circulação dava sinal de problema e ela mexia o dedão sorrindo para o pé pressionado pelo seu corpo cansado.

As coxas firmes tinham marcas arroxeadas. Era muito desastrada. Saiu da posição em que estava. Tirou o foco de si mesma. Do lado de fora os bichos cantavam e ela não se sentia mais encurralada. Era o dia que chegava e assim o medo ia embora.

Sentia-se quase livre. “Nos dias de hoje, o quase é pleno.”, pensava. “Foda-se a gramática!” Sentiu um cheiro estranho e cansou-se de ter o olfato apurado. Estalou o maxilar e esfregou a sobrancelha esquerda. O ombro direito foi o seguinte. E coçou a da direita arrumando e alisando o nariz quase que ao mesmo tempo.

Olhou suas mãos. Os cantos dos dedos doíam do insistir manual, mas a cabeça estava feliz, porque era tempo de festa. Ela não queria saber de lamúrias, pois as borboletas vivem pouco e morrem livres porque dão valor ao tempo. Olhava o dedão novamente. E a câimbra corria até a batata da perna.
Tudo culpa do dedão.

A Cachorra: rompantes, empavonamentos e outras neuróias

http://fineartamerica.com/featured/1-elevator-julie-fischer.html


Surtou...

Do nada?



Neurótica! Diziam...

Mas a verdade é que era muito sã. E de tão sã adoeceu até a Cachorra, que uivava de noite quando a lua saía de mansinho. Pensava ser um gato alado, coitada. E queria sair voando e miando sem parar.



Certo dia chegou em casa e a pobre peluda estava lá, sentada na poltrona de pernas cruzadas. Sim! Pernas cruzadas! Contavam... Mas a verdade é que já tinha feito isso outras vezes, não fosse o espantamento pelo fato de estar de avental. Pensava ser chef de cozinha, tadinha. E esperava a cliente chegar para montar a praça. Mas a surtada apenas abria o pacote de ração e despejava na tigela escrita Bob (!). Em seguida, servia-se de um trago e ia dormir. Nem um afago. Nem uma palavra. Nada.

Espalharam por aí que a última vez que a viram antes do romance com o motorista da carrocinha tinha eclampsias sem estar grávida... Ele fora o primeiro de sua vida a lhe dar uma salsicha. E pegou infecção intestinal por isso, ainda por cima.

Coitada da Cachorra...

No entanto, ainda viveu um bom tempo, terminando o dia em gargalhadas aterrorizantes. Não sem antes entrar em coma profundo e dar um trabalho danado, afirmavam... Era contra a eutanásia e propositalmente ajeitou um testamento que deixava tudo para a vizinha que lhe jogava pedaços de galinha na intenção de sufocá-la antes de uma noite uivante.

A vizinha sabendo disso, entre um trago e outro, atirou-se copiosamente no caso da Cachorra e checava-lhe as necessidades a cada hora, limpando-a e perfumando-a de gratidão. A quadrúpede continuava gargalhando cada vez mais maquiavelicamente, só que agora sem ninguém ouvir.

Em seu epitáfio, Cachorra mandou o Papagaio escrever: “Aqui jaz uma mosca morta.” E o Grilo Falante discursou a única coisa que a peluda deixou escrita: Fodemo-nos todos!

Fim.